Naquela semana, senti que ela estava estranha. Fazia os
mesmos gestos, as mesmas ações habituais, as mesmas palavras, mas estava
estranha. A gente percebe, não tem uma lógica definida, é apenas uma intuição
trabalhada, apenas uma percepção aguçada por tanto conviver e prestar atenção
em algo que se gosta, assim como saber que aquela única nota estava errada no
show ao vivo do seu guitarrista preferido.
E lá estava eu sentado no sofá de casa, perdido no meio de
uma década ao avesso, sem saber direito quem eu era e nem o quanto valia meu
dinheiro, folhando sem prestar nenhuma atenção as páginas de um jornal que
escorria sangue e que através da tragédia promovia sua venda. Ironicamente, ele
mesmo fazia campanha ao desarmamento de uma nação.
Ao olhar aquilo, lembrei o quanto valeria uns bons trocados
um velho revólver que meu pai guardava dentro de uma caixa de sapato no fundo
do seu roupeiro e que já tinha me liberado para trocá-la. Aquela arma nunca
teve nenhuma finalidade, nunca protegeria nossa família de nada. Pelo
contrário, poderia ser algo para aumentar um terror que tantas casas daquele
infame país já haviam presenciado.
Em meio àquela tarde abafada e tão inútil quanto aquele cano
32, resolvi trocá-lo por uma grana considerável. Era uma maneira, também, de
fazer algo por mim mesmo naquele dia distante e sem graça, e assim parar de me
martelar o tempo todo pensando nela e qual seria o motivo de estar daquele
jeito. Assim, refrescando a cabeça, eu também deixaria de ficar achando
problema em cada vírgula mal colocada e que gerava um milhão de desconfianças.
Enfim, cabeça ocupada, sem espaço pra bobagens. Tirei
algumas ideias ridículas da cabeça, envolvi o objeto em um pano, coloquei
dentro de uma bolsa e rumei até a repartição do Governo que trocava armas por
uma quantia em dinheiro. O
ar da rua me fez bem, o trânsito me deixou alerta, o cheiro de uma padaria
aguçou meu paladar, e assim por diante.
Depois de resolver esquecer aqueles pensamentos de uma vez por
todas e pensar, positivamente, que aquele comportamento dela poderia ser apenas
uma fase ou algo que interpretei mal, resolvi passar na sua casa, ver como
estava, se já tinha chegado, fazer um carinho qualquer, combinar algo pra mais
tarde e seguir meu caminho pra pegar aquela grana em troca do revolver.
Assim, desviei as três ou quatro quadras a mais que
separavam o destino inicial da escala na sua casa, e fui leve ao encontro do
prédio onde ela morava, em um lugar que já não tinha tanto movimento como as
ruas anteriores. Enfim, era só uma passada rápida mesmo, daquelas pra fazer pensar:
“lembre-se que eu existo, estou aqui por ti e pra ti”.
Logo ao dobrar a esquina, vejo um casal na porta do prédio,
e sigo caminhando. Era um cara de costas e uma guria no degrau da entrada, abraçando
ele por cima dos ombros, nariz com nariz. Continuei e pensei: será que ela já
chegou? Será que está em casa? A gente costuma fazer isso no mesmo lugar.
Fui me aproximando, e há uns 30 metros daquele casal
eu já tinha percebido que era ela mesma, mas aquele cara não era eu. Ninguém,
no universo, soube da raiva que senti. Ninguém no mundo calcula o quanto o
sangue ferveu. Eu não cabia em mim, então me aproximei mais um pouco para ter
certeza, e tive.
Ela o afastou quando percebeu minha presença, e eu não
conseguia sequer falar nada. Tinha uma energia suprema e extrema que tomou
conta das minhas atitudes, do meu humor, da minha consciência. Eu sequer
conseguia escutar as palavras dela tentando reduzir o que estava mais do que
claro. Ali estava eu, em frente aos dois, tomado pela força de um vulcão em erupção,
pensamento cego, sentimento abalado, uma imensa sensação indescritível de
fúria. E com uma arma na mão.
Ninguém saberia calcular o certo e o errado naquele momento.
Ninguém conseguiria medir qualquer atitude tomado de tamanha raiva. As
consequências seriam todas justificáveis, e nem seria a primeira vez que isso
aconteceria na humanidade. Não havia o discernimento do que era certo e errado.
E havia coragem e determinação para fazer absolutamente qualquer coisa.
Houve sangue, mas apenas no meu olho. A raiva virou uma
desolação tremenda, mas eu sabia, e isso me bastava, de quem eu era e os
valores que eu carregava. Cambaleei, deixei aquela cena com uma tristeza
profunda, e ainda ofegante veio a certeza de que a vida pagaria mais do que
qualquer coisa que eu fizesse naquele momento, e esse seria o calibre mais
poderoso. Prossegui meu caminho com um pensamento firme quando pensava no que
recém havia acontecido: o inferno vai ter que esperar.
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