segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Embarque

Dogs by Pink F on Grooveshark
(Versão I)

- Enfim, acho que vou indo...

Ele deu mão em sua pequena bagagem, mas ficou ali parado, sem mover um passo qualquer, olhando para ela e esperando as suas palavras e suas ações.

- Tá bem, te cuida...

E ela também ficou ali parada, mas com um furacão dentro da cabeça. Ela queria que ele partisse, para que assim, ele pudesse realizar algumas de suas vontades sem que ela interferisse em nada.

Porém, outro pensamento incomodaria muito mais: eles se gostavam e tinham uma história, e ela provavelmente seria desfeita no momento que ele partisse, laços deixariam de existir, haveria uma bifurcação na estrada que os dois andavam juntos.

Foi assim, que veio, quase de súbito, a vontade de abraçá-lo o mais forte possível, dizer que ficasse, que não partisse para outros ares, mas sim para mais longe na estrada que já estava sendo trilhada. Ela até chegou a se inclinar, a esboçar milímetros à frente e segurá-lo para onde ela queria que sempre estivesse: no seu abraço. Mas relutou, não agiu de acordo com sua vontade, freou seu impulso e apenas assistiu ele partir em um horizonte que não encontraria jamais.

...

Mal sabia ela que eu, logo que me virei para ir embora, pensei em ficar, em reajustar os planos. Eu não deixaria de fazer nada, nem de saciar minhas vontades, apenas readaptaria minhas ações para que pudesse fazer o que mais queria na vida, estar perto dela. Se houvesse qualquer chamado, eu voltaria, mas ela deixou e eu deixei-me ir.

Jovem e destemido, fiquei afastado o tempo suficiente para me afastar dela. Era inevitável: se eu fosse, ela seguiria a sua vida, e eu a minha. Vivi, sim, bons momentos, novas experiências, conheci novas pessoas, me envolvi com outras mulheres, tive outras perspectivas e realidades.
Quando voltei, não era mais o mesmo, assim como ela também não. Viveu, estudou, namorou, morou em outros lugares, até sumir de mim por completo. Creio que assim como eu, ela sentiu que as ruas não eram mais as mesmas, as pessoas não eram mais as mesmas, os sentimentos não eram os mesmos, e a intensidade deles também era diferente.

Enfim, escolhi fazer algo por mim mesmo, pensar em mim antes de tudo, trabalhar firme e aproveitar as oportunidades que a vida me traria. Tornei-me cético, egoísta, escravo de uma situação social na qual aceitei suas condições. Acreditei na loucura diária do mercado, e que nele eu tinha um real motivo pra viver.

Assim, mantinha um aperto de mão firme e uma posição séria por onde ia. Ganhava a confiança das pessoas desse modo, e não porque as cativava com a minha essência, e sim com um jogo de interesses e necessidades. Como um jogo, necessitava-se de sagacidade: quando me viravam as costas, tinha a oportunidade de cravá-las uma faca e vice-versa. Os fins justificavam os meios e os cálculos me deixavam mais frio. Gozei de certo sucesso deste jeito, fui reconhecido pelos números que juntei, pela posição que eu representava. Fui ficando mais duro e mais velho, mais sem alma e mais sem cor.

Tive uma vida de sentimentos rasos. Hoje estou aqui, um velho homem 40 anos depois daquele abraço não dado, pensando como a minha vida foi vazia e minhas lutas foram sem sentido. Encontro-me sozinho, em um leito, com câncer, esperando a morte chegar para que isso termine de uma vez por todas. Esperando, inclusive, que isso termine com o meu doloroso coágulo de arrependimento na cabeça por não dedicar a minha vida a ela, e sim a mim mesmo.


(Versão II)

- Enfim, acho que vou indo...

Ele deu mão na pequena bagagem, mas ficou ali parado, sem mover um passo qualquer, olhando pra ela e esperando as suas palavras e suas ações.
- Tá bem, te cuida...

E ela também ficou ali parada, mas com um furacão dentro da cabeça. Ela queria que ele partisse, para que assim, ele pudesse realizar algumas de suas vontades sem que ela interferisse em nada.

Porém, outro pensamento incomodaria muito mais: eles se gostavam e tinham uma história, e ela provavelmente seria desfeita no momento que ele partisse, laços deixariam de existir, haveria uma bifurcação na estrada que andavam juntos.

Foi assim, que veio, quase de súbito, a vontade de abraçá-lo o mais forte possível, e de dizer que ficasse, que não partisse para outros ares, mas sim para mais longe na estrada que já estava sendo trilhada. Ela até chegou a se inclinar, a esboçar milímetros à frente e segurá-lo para onde ela queria que sempre estivesse: no seu abraço.

...

E então, eu esperei um segundo a mais. Estava a dois passos dela, e, de súbito, cada um deu um passo à frente. Envolvi-a o máximo que em meus braços, que colocou seu corpo pequeno todo junto ao meu, e ficou ali, parada, com a cabeça no meu peito e com os olhos fechados.
- Fica? Ela falou em um tom quase sem voz.

- Sim... Eu disse, quase como um murmúrio, e com a certeza de que nenhum lugar no mundo seria melhor que o nosso lugar.

As dificuldades não sumiram, os desafios ficaram cada vez maiores, a readaptação dos planos passaria por diversas dúvidas e intervenções, o caminho ficava tortuoso e a estrada dava sustos, mas não havia motivos pra desistir, havia motivos pra lutar, e o tamanho dos problemas pouco importa quando se tem uma razão maior.  E ela era a minha razão.

Assim a gente foi indo, o tempo foi passando e as coisas foram se ajeitando. Os dias foram ficando cada vez mais calmos e as tempestades, que antes assustavam, foram ficando chuvas leves de um início de outono que se repetia ano a ano.

Hoje foi um dia onde surgiu uma nova situação e, de fato, interessante. Descobri, através de uma consulta rotineira, um pequeno tumor. Não fiquei com a menor aflição. Meu único medo é abandoná-la, não poder mais contribuir com o meu braço para estender a ela em toda e qualquer situação. Isso me encoraja a passar por mais essa dificuldade, e, além do mais, sei que ela estará ao meu lado pra superar qualquer coisa.

Podemos dizer, sim, que um amor de tantas rugas já tem o seu lugar, então deixamos que o tempo nos leve, porque desde aquele abraço, há 40 anos, eu soube onde eu seria feliz.


(Versão final)

Não se sabe o que aconteceria 40 anos depois, muito menos o que foi falado no salão de embarque do Aeroporto Galeão pelos tripulantes do Vôo 447, que partira do Rio de Janeiro com direção à Paris na noite de 31 de maio de 2009. O que se sabe é que seu destino final não foi o Charles de Gaulle, e sim algum lugar no infinito azul turvo e implacável de um oceano com nome, e talvez morada, de paz.

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