quarta-feira, 16 de maio de 2012

Colo

Pink Floyd by Mother on Grooveshark


- Oi... já, meu bem? E daí, como tá?

Ela sabia que ele já havia entrado, mesmo simulando uma contida surpresa, e que o horário era o habitual da sua chegada. Antigas palavras e sentimentos se repetiriam numa doçura impassível de comparação.
- Tudo... O que tu faz aqui essa hora?

Disse ele quase num bocejo retórico e com um resto de humor e contentamento por estar naquele abrigo.
A verdade é que ela sabia desde que ele abriu a porta e dedicou passos incertos pela casa sem a firmeza e vitalidade de sempre que ele já não estava bem. Mesmo assim, ela repetiu os mesmos gestos tão conhecidos, acolhedores e habituais, como se não soubesse que naquele caminhar e resposta estava um espírito decadente, machucado e perdido.

- Ora, eu moro aqui, esqueceu? Fiz uns exames, não fui trabalhar... Já comeu? Respondeu com a mesma graça de sempre.

- E o que deu? Com palidez apática, ele questionou.

- Coisa de rotina... Faz tempo que eu não fazia. O doutor disse pra fazer mais dois, mas só vai dar daqui a 20 dias. A gente paga esse absurdo e tem que esperar todo esse tempo...

Ela acrescentou isso e outras coisas mais, mas sabia que ele não escutava, sabia que a sua cabeça estava distante, que foi uma noite péssima e que a manhã pesou nos seus ombros, endureceu seu cotidiano, desesperançou o seu viver. Não quis perguntar, não quis saber o porquê de mais uma vez ele estar assim.
Ela tinha a sabedoria de quem há mais tempo também havia se machucado e se recuperado tantas outras e tão maiores vezes. Por isso continuou a falar, doce, calma, terna, até porque ele estava ali, em volta, só pra ouvir qualquer coisa na tentativa de tentar se distrair, de desviar o pensamento e voltar ao mundo que desde o nascimento abrigou seu bem-querer.

Foi então, que depois de longos anos, enquanto ela arrumava roupas na cama, que ele voltou a deitar naquele mesmo colo, a sentir aquela mesma segurança e calor infantil em um corpo já com tantas cicatrizes, e o sorriso quebrado ficou leve por instantes, acariciado e abençoado pelo cordão umbilical.

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